sábado, setembro 17

EPIGRAMA



A loucura é a grandeza dos simples:
assim são eles mais do que eles,
colhendo flores brancas e reles.

Os doidos, de olhos arregalados,
crescem devagar como as árvores:
só não dão folhas nem frutos.

Amo as suas frases sem sentido:
dobram nelas os sinos abstractos
de um campanário sem janelas.

Dai-me, ó loucos, a vossa razão
esses remos de subir o tempo
até à fonte de um deus obsceno e nu.



(Nuno Júdice)

..

Da vez primeira em que me assassinaram
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha...
Depois, a cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha...

Hoje, dos meus cadáveres eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada...
Arde um toco de vela amarelada...
Como único bem que me ficou!

Vinde, corvos, chacais, ladrões da estrada!
Pois dessa mão avaramente adunca,
Não haverão de arrancar a luz sagrada!

Aves da Noite! Asas do Horror! Voejai!
Que a luz, trêmula e triste como um ai,
A luz de um morto não se apaga nunca!


(Mario Quintana)

AO ESPELHO



O que mais me aproveita
em nosso tão freqüente
comércio é a tua
pedagogia de avessos.
Fazem-se em nós defeitos
as virtudes que ensinas:
o brilho de superfície
a profundidade mentirosa
o existir apenas
no reflexo alheio.
No entanto, sem ti
sequer nos saberíamos
o outro de um outro
outro por sua vez
de algum outro, em infinito
corredor de espelhos.
Isso até o último
vazio de toda imagem
espelho de um si mesmo
anterior, posterior
a tudo, isto é, nada.

 (José paulo Paes)